quinta-feira, agosto 27, 2009

A fotografia Plástica

Foto V
A fotografia Plástica- de La Photographie Plasticienne, de Dominique Baqué. (Paris: Regard, 2000)

Algumas notas sobre a fotografia contemporânea

No campo da arte contemporânea, a “fotografia plástica” é uma modalidade que cada vez mais transforma-se na maneira pela qual os artistas escolhem para exprimir suas idéias, tal qual a pintura ou a escultura. Para defini-la, diríamos que ela não seria a fotografia criativa, tampouco a fotografia aplicada à publicidade, ou ao jornalismo. Trata-se daquele meio que os artistas utilizam, porém não apenas aquela que se inscreve em uma história supostamente purista e autônoma do meio, mas aquela que se entrecruza com as artes plásticas, participando do processo de hibridação generalizada das mídias e da abertura dos campos de produção.
Desde os anos 60, arte conceitual e fotografia nutrem afinidades- e a participação da fotografia continua se inserindo ativamente nesse processo de desconstrução do modernismo. A partir de então, em um campo fotográfico plural e heterogêneo, muitos críticos não deixam de se admirar do fato de que embora um bom número de artistas retrabalhem suas imagens fotográficas em imagem digital, existe uma falta de reflexão sobre a passagem do meio analógico (fotografia de prata) ao digital. Isto porque esse autor, embora com sua competência muito relativa sobre este tema, confessa seu ceticismo diante do deslumbramento pelo qual passa hoje a arte tecnológica. Mas este seria sem dúvida assunto para um outro ensaio. De qualquer maneira, o médium fotográfico começa desta maneira a se inscrever no campo da arte. A fotografia migrou de suas fronteiras tradicionais (o purismo) para o território da pintura.
Um outro risco aqui também reivindicado: aquele de tentar realizar um diagnóstico sobre a produção fotográfica mais contemporânea. Tentar avaliar o muito próximo e recente é algo perigoso. Por trás da desestabilização da arte na qual a fotografia tem sido o vetor, a presente reflexão se fecha sobre o abandono da forma que atestam as obras mais recentes, sob a “pobreza”- deliberadamente reivindicada- das imagens neste final dos anos noventa. Em definitivo, o paradoxo seria colocado em um ponto de extrema tensão: o médium fotográfico que, mais do que outro meio, sem dúvida, gostaria de se inscrever no campo da arte, não o faz de outra maneira que não seja a de minar obstinadamente as suas fundações. Corroento o seu interior. À fotografia, então. Ao risco da arte.
Antecedentes modernos: em 1968, a Land Art, através de uma exposição na Duran Gallery em Nova York, Richard Long, Sol Lewit e Dennis Oppenheim apresentaram através da fotografia seus trabalhos artisticos.
Em 17 de novembro de 1970 os artistas Otto Mühl e Herman Nitsh mostraram uma instalação denominada Sangue e Matérias Fecais em Colônia, Alemanha. Na ocasião, galinhas foram degoladas e seu sangue foi misturado com fezes e o produto foi espalhado pelo corpo de nudistas. Os artistas documentaram fotograficamente todo o evento.
Em 1973, Gina Pane coloca espinhos de rosa em seu braço, durante uma performance chamada de Ação Sentimental. Em 1974, durante outra performance intitulada Ação Melancólica, ela corta partes da orelha com uma lâmina de barbear , ações são registradas por fotos. O médim fotográfico é sempre presente. São novos modos de agir artisticamente.
A noção de evento surge com uma forte dimensão expressiva e conceitual.
O CORPO torna-se ele próprio um médium e um MEDIADOR: o corpo em seu estado puro, fora dos padrões sociais, como uma força da natureza, uma busca da força primária do corpo, mesmo através do sofrimento, uma espécie de reinvenção do corpo dentro de uma sociedade industrial avançada como a européia, onde alguns países tem as suas contas a acertar com o holocausto. Aí entram estes EXORCISMOS coletivos, os ritos de sacrifício onde o corpo deva renascer- desejos irracionais , excrementos, vísceras, suores, sangue.
Uma teatralização dos ritos sagrados, uma arte de ATITUDES, onde a fotografia joga um jogo duplo: ela entra como DOCUMENTAÇÃO ou como a PRÒPRIA OBRA.
O médium fotográfico de qualquer forma participa como documentário, mas também como integrante do projeto na sua CONCEITUALIZAÇÂO e em seu modo de exposição.
O ATO FOTOGRÁFICO se integra ao trabalho, como nos percursos urbanos de Richard Long. As fotos não se contentam em mostrar a paisagem, mas de traduzir uma modalidade de espírito e uma sensibilidade do caminhante. A VISIBILIDADE da obra mostra-se sob a forma de uma fotografia.
Gina Pane, ao recortar ou cortar bonecos- reproduz seu próprio corpo por contato ou impressão, utilizando o sofrimento para realizar uma reinvenção do corpo e a sua própria pele como película fotográfica

Há uma passagem de conceito de Obra Pobre – pobre como a verdade- uma imagem pobre, frágil, precária, testemunha, para a de tornar a obra ela própria pobre, indo da pobreza à necessidade, abrindo o campo a uma certa antropofagia, à contaminação e à hibridação.
Podemos situar algumas fontes comuns na fotografia contemporânea: Uma fotografia escrita na primeira pessoa, que se compara á uma história pessoal, icônica , e outra que reivindica as coisas, destinada a restituir a factualidade das coisas.

A DESCONSTRUÇÃO DO MITO DO INSTANTE DECISIVO de Cartier-Bresson- que seria o instante absoluto, o acontecimento reconstituído na plenitude de seu ato, é seguidamente abordado, pois a fotografia plástica opõe-se à fugacidade do instante decisivo. Ela situa-se fora do tempo.
Enquanto a foto jornalística é feita comumente em PB, a fotografia plástica é colorida e em grande formato- há uma opção pela POSE, pela CONSTRUÇÂO, uma prática das CITAÇÕES, do maneirismo kitsh, a fascinação pelo simulacro, pelo teatro. A fotografia exerce sua fascinação pelo fetichismo ao objeto.
Nas atitudes de apropriações, mestiçagens e hibridações, poderíamos falar de um certo Neo-Pictorialismo, um retorno ao pictórico em fotografia. À sua maneira, este pictorialismo contemporâneo perpetua as mesmas características do fim do século XIX- a acentuação da importância do trabalho da mão, a reapropriação de técnicas anteriores, o uso do pincel- como se a fotografia dissesse a cada momento: eu não sou uma fotografia, para chegar ao campo das artes plásticas- ao estatuto da obra. Uma restauração da aura, uma reabilitação da mão.Seria uma atitude pós-moderna contra o dogma de pureza dos médiums O modernismo acreditava na existência de uma essência tanto na pintura como na escultura e na fotografia. Já a pós-modernidade, acontece a hibridação.
A FOTOCOLAGEM, que começou com a pintura, estendeu-se à fotografia, ela própria considerada como um FRAGMENTO da realidade- trata-se da estética do fragmento- e uma tentativa de troca entre a foto, a pintura e o desenho- uma dialética da desconstrução e da reconstrução.
As experiências fotográficas elaboradas a partir de imagens cinematográficas exaltam os momentos de ausência- a INTERFACE do cinema e da fotografia como Allan Fleischer. Desde o seu nascimento, as imagens animadas do cinema nos fazem sonhar com uma tela que não seria insensível às nossas marcas, a nossos toques como uma tela branca de pintura – uma tela que tudo fixaria
Annete Messager , por sua vez, propõe a instalação quase arquitetural da fotografia- apropriações de pedaços de corpos os outros, uma espécie de FETICHE: Vejamos sua declaração: ”O corpo existe de um modo muito próximo ao fragmento. Quando se vai à um médico, por exemplo,se diz: estou mal do pé, estou mal da cabeça. Não se fala do corpo em sua totalidade. Diz-se também que se está mal de amor. Eu gosto destas imagens do corpo que possuem qualquer coisa de mórbido mas que ao mesmo tempo se descobre o contrário, quer dizer qualquer coisa de alegre. Gosto também de misturar elementos que não tem nada a ver. A fotografia , sendo sempre ligada a um momento preciso, é temporal, enquanto que a pintura parece de alguma maneira suspensa do tempo. Esta espécie de incompatibilidade que me interessa”.

A foto realiza a desconstrução do modernismo, por causa da natureza do médium fotográfico: sua capacidade de reproduzir , repetir e serializar, mas também de fazer balançar esta noção de autor, de obra e de originalidade. A fotografia é o médium mais propício para desconstruir esta noção de autor

No trabalho de Cindy Shermann, não há mais o “eu”- há uma espécie de identidade coletiva, na qual cada um poderá, como dentro de um reservatório de possibilidades infinitas, ser. Não há a verdadeira Cindy Shermann nas fotos, há as diversas aparências que ela assume.

Em Christian Boltansky, há um trabalho na desconstrução do sujeito, na não-história. A perda do “eu”, o que é sempre fraco, parcial, mentiroso, banal, estereótipo, sem consistência, suscetível de se apagar, de se diluir na massa. Um eu consistente, intercambiável ao infinito- de onde nasce a fascinação pelos álbuns:
Fotos de férias de uma família desconhecida que, através da numeração, destrói a noção de uma identidade pessoal e a substitui por uma proliferante e canibal IMAGEM COLETIVA- os álbuns de Boltansky terminam com a mitologia do singular, propondo uma espécie de troca indiferenciada de caras e de histórias.
Por isso buscamos imagens estereotipadas e suficientemente imprecisas para que elas sejam o mais comum possível- imagens “flou” (borradas) para que o espectador possa imaginar – estas imagens funcionam como lugares-comuns- lugar onde nós podemos nos reencontrar, nos reconhecer- no banal, no conveniente.
Um simulacro de identidade pessoal onde uma série de ‘lutos’se realizam na fotografia atual, a destruição da aura, a destruição da função de autor, o vacilamento do sujeito. Vê-se a busca de uma fotografia de anti-herói, do banal- busca do banal do pobre- estética do banal que se cruza com a prática do vídeo em busca de um diário intimo formado de fragmentos do real.
O início do corpo teórico
Nascida antes do cinema, a fotografia ingressou no universo da arte muito mais tardiamente do que este último. E com uma outra desvantagem: enquanto que logo em seguida um discurso teórico e crítico tomou a linguagem do cinema a seu domínio, onde nunca faltaram textos para analisar e defender a sétima arte, ao inverso, a fotografia tinha recém surgido e já enfrentava controvérsias às vezes violentas, às vezes brilhantes, como a surgida no Salão de 1859, com Beaudelaire. Condenada então a não passar de uma humilde serva das artes e da ciência, a fotografia ficou por muito tempo relegada à condição de um medium secundário, que não merecia nenhuma reflexão, como se o pecado original que a acompanhava- uma arte surgida da máquina e não da mão do homem- não cessasse de acompanhar uma prática que- culpa do paradoxo, uma vez mais- não adquirisse seu primeiro status de arte se não fosse sob os auspícios do pictorialismo, este filho bastardo da fotografia e da pintura.
Significa dizer que se não levarmos em conta alguns textos-manifestos das vanguardas alemãs ou soviéticas, deveríamos esperar 1931, com A pequena história da fotografia de Walter Benjamin, depois 1936 com A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica para que enfim a fotografia fosse promovida ao status de objeto teórico e que, contra aquele que foi o impasse pictorialista, as determinações especificamente fotográficas do médium- objetividade, ausência de aura, seriação e reprodutibilidade- fossem claramente expostas e discutidas. Entretanto- e aqui há um novo paradoxo- os textos de Benjamin sobre a fotografia continuaram, de uma certa maneira, sem continuação, como se, a partir deles, tudo teria sido dito sobre a fotografia.
Ao mesmo tempo em que a fotografia entrava no campo das artes plásticas nos anos setenta, é importante reconhecer que o corpus teórico que os fotógrafos e críticos dispunham era limitado: além de Benjamin, anteriormente mencionado, podemos apenas consultar as tradicionais histórias da fotografia, além do hoje clássico Fotografia e Sociedade, de Gisèle Freund- que dedicou sua tese ao estudo da fotografia na França do século XIX- e os ensaios sobre a fotografia da romancista e ensaista americana Susan Sontag (sobre a Fotografia) publicada no The New York Review of Books em 1978 .Tanto em Gisèle Freund como em Susan Sontag podemos assistir a um enfoque teórico e sociológico da fotografia, e à uma reflexão sobre o estatuto, as funções e os poderes- notadamente morais, sociais e ideológicos, do médium. Mais ferramentas de reflexão do que uma verdadeira teorização da fotografia, tais textos não afiançariam realmente a emergência de uma fotografia que começava a se integrar nas artes plásticas.
De fato, a legitimação- pois certamente trata-se da legitimação que nos preocupamos- virá mais tarde: do encontro da fotografia com Roland Barthes, e de uma obra maior no contexto dos anos 80, A Câmera Clara (1980), modestamente denominada de anotações sobre a fotografia. Nós sabemos, Roland Barthes sempre preferiu a fotografia ao cinema, arte pela qual ele se mostrava pouco sensível, e seu interesse pela imagem fotográfica aconteceu progressivamente, certamente não sem contradições, até pelo uso da primeira pessoa que revela uma relação íntima e afetiva à fotografia que testemunhará a Câmara Clara. Seu último livro, com conotações testamentárias, precedido e preparado por uma reflexão desenvolvida trinta anos antes, através de A Mensagem Fotográfica (1961), Retórica da Imagem (1964) e Notas de pesquisa sobre quaisquer fotogramas de Einstein (1970), sem contar com os numerosos capítulos de Mitologias que convocavam, pouco a pouco, as referências fotográficas. O percurso teórico se fará então através de um enfoque semiológico, que analise os diferentes níveis do sentido da imagem, em direção à uma “fenomenologia desenvolta” que, fora dos conhecimentos constituídos, a chamará a uma subjetividade íntima, revolucionada como revolucionária, despida de uma ambição estruturalista, Colocada à nu, exposta.
Ainda faltaria, para medir ao tamanho de tal percurso e do desvio do questionamento, de voltar ao texto de abertura, A Mensagem Fotográfica, de 1961. Paralelamente ao progressivo estabelecimento da articulação texto-fotografia, é a própria matéria da fotografia que se vê levada em conta: Barthes analisa em toda a fotografia a “coexistência de duas mensagens, uma sem código e outra com código”. Mas o que seria o código aqui? Aquilo que Barthes denomina “a arte, o tratamento, ao a escrita, ou a retórica da fotografia”. Quanto ao fato de que existiria uma mensagem sem código, isto significa que, para o Barthes semiólogo de 1961 a imagem fotográfica apareceria para a compreensão como uma mensagem sem código, , de pura denotação. Em outros termos, , para passar do real à sua fotografia, não seria em nada necessário “recortar este real em unidades” e de “constituir estas unidades em signos diferentes substancialmente do objeto”. Barthes prende-se aí à uma tradição da imagem como um reflexo ou, no caso da fotografia, como uma impressão do referente.
Charlotte Cotton, em La Photographie dans l’Art Contemporain (Thames & Hudson) define a fotografia contemporânea por similiaridades estilísticas: 1-Como se fosse arte , artistas-fotógrafos que utilizam a fotografia para documentar performance e happenings. 2-Era uma vez- artistas que utilizam-se da dimensão narrativa da fotografia. 3- Neutra , caracterizada pela ausência de dramas ou hipérboles visuais, resultado de um olhar objetivo, e não o ponto de vista do fotógrafo, domina acima de tudo. Uma estética neutra, caracterizada pela linha de pesquisa da academia de Dusseldorf. 4- Intimidades, caracterizada nas relações pessoais e emocionais expressas pe,o meio fotográfico, com debates sobre a noção de originalidade, autor e veracidade. E 5- Reapropriações,, que trata da ampla questão da originalidade.